segunda-feira, 22 de julho de 2024

A LUNETA ÂMBAR #17

CAPÍTULO 17: ÓLEO E LACA

Mary Malone estava construindo um espelho porque queria testar uma ideia que tivera: tentar capturar as sombras. Sem os instrumentos de seu laboratório, ela tinha que improvisar com os materiais de que dispunha. A tecnologia dos mulefas praticamente não empregava metais, de modo que ficaram fascinados com o canivete do exército suíço, que era o objeto mais precioso que Mary possuía.

Mary começou a queimar um desenho num galho seco enquanto mostrava os acessórios e seu canivete para uma zalif que era sua amiga, chamada Atal. Foi isso que a fez começar a pensar nas sombras. Mary queimou o desenho (uma simples margarida) na madeira, mas, à medida que a linha de fumaça foi subindo, ela pensou que, se aquilo se tornasse um fóssil e um cientista o encontrasse dali a milhões de anos, ainda poderiam encontrar sombras rodeando-o porque Mary trabalhou nele.

Mary mergulhou num estado de torpor e devaneio até que Atal perguntou com o que ela estava sonhando. Mary tentou explicar, mas não esperava que Atal acompanhasse sua explicação. Atal surpreendeu-se ao dizer: "Sim, sabemos do que você está falando, nós chamamos de luz". Depois, disse que não seria luz em si, mas um faz-parece (termo que eles empregavam para metáfora). Mary perguntou o que eles sabiam a respeito daquilo e de onde vinha. Atal disse que vinha deles e do óleo. Mary sabia que ela estava se referindo ao óleo nas grandes rodas de nozes. Atal disse que, sem as árvores, isso desapareceria de novo.

Mary estava tentando relacionar as coisas com o que Lyra havia lhe dito e o que a tela do computador havia lhe mostrado. Em suas investigações com crânios fósseis, seu colega Oliver Payne tinha descoberto que, cerca de 30 mil anos atrás, havia ocorrido um grande aumento no número de partículas de sombra associadas aos restos mortais de seres humanos. Mary perguntou a Atal há quanto tempo existiam os mulefas. Atal disse: "Trinta e três mil anos". Também disse que, um dia, um ser sem nome começou a brincar com uma noz e, enquanto ela brincava, uma serpente apareceu e falou com ela (é faz-parece). A serpente mandou que ela enfiasse o pé no buraco do fruto onde a serpente estava e ela se tornaria sábia. Então, ela fez isso e o óleo penetrou em seu pé, fazendo com que visse com mais clareza. A primeira coisa que viu foi o sraf. Era algo tão estranho e agradável que ela quis compartilhar com seus parentes. De modo que ela e seu parceiro pegaram as primeiras nozes e descobriram que sabiam quem eram: mulefas, e não animais de pasto. Chamaram a si mesmos de mulefas. Deram nome à árvore-das-sementes e a todas as criaturas e plantas.

Mary disse que não conseguia ver sraf como Atal e que gostaria de fazer o espelho com a laca-de-seiva, porque achava que poderia ajudá-la a ver. Mary foi até a plantação de laca com Atal e retirou um pouco de seiva com a permissão dos mulefas. Com a seiva, ela fez o verniz e passou no espelho. Depois vinha o trabalho de dar polimento: um dia inteiro esfregando a superfície em suaves movimentos circulares até que seus braços começaram a doer e ela adormeceu.

No dia seguinte, após ajudar os mulefas a trabalhar em uma capoeira, Mary começou a fazer suas experiências. Primeiro tentou usar a folha de laca como um espelho, mas tudo o que conseguia ver era um tênue duplo reflexo na madeira. Então, pensou que precisava da laca sem a madeira e teve a ideia de ir cortando fora a madeira com o canivete suíço. Ela se perguntou se a laca amoleceria se ela deixasse de molho, o mestre artesão disse que não e lhe mostrou um líquido que corroeria qualquer pedaço de madeira em algumas horas. Pelo cheiro e aspecto, Mary pensou ser ácido. Mary colocou o ácido na madeira, que foi amolecendo até se soltar. Mary ficou com uma placa de laca transparente amarelo-acastanhada. Quando olhou através dela, não viu nada em particular. Ela se perguntou o que aconteceria se olhasse em duas placas, uma sobre a outra, então pegou o canivete suíço e cortou a laca em dois pedaços. Quando juntou as duas placas e olhou através delas, a coloração âmbar estava mais densa, realçava certas cores e apagava outras, dando uma aparência ligeiramente diferente à paisagem, mas não havia nenhum sinal das sombras.

Atal se aproximou de Mary e perguntou se ela já podia ver sraf. Mary disse que não. Mary deixou as placas um pouco de lado e Atal começou a arrumar o cabelo de Mary, enquanto Mary limpava as rodas e passava óleo nas garras de Atal. Depois, Mary voltou e pegou as placas com as mãos sujas de óleo. Quando ela olhou para Atal através da placa com mancha de óleo, viu um enxame de cintilações douradas em volta de Atal. Mary pediu para pegar um pouco de óleo e passou em uma das placas. Quando olhou através delas, tudo estava diferente; agora podia ver as sombras. Atal disse: "Então finalmente você consegue ver. Bem, agora deve vir comigo". Outros mulefas começaram a aparecer, inclusive mulefas que ela não conhecia. Mary perguntou: "Para onde devo ir? Por que todos eles estão vindo para cá?" Atal só disse para ela não se preocupar, que não iria machucá-la.

A reunião parecia ter sido planejada há muito tempo, havia uns cinquenta mulefas. Mary perguntou o que estava acontecendo e pediu para Atal contar. Atal disse que não e que Sattamax iria falar. Mary não conhecia Sattamax, era um zalif mais velho do que qualquer um que ela tivesse visto até então. Sattamax começou a falar. Ele deu as boas-vindas a Mary e disse ser grato por suas atividades desde que chegou para viver entre eles. Disse que, com a ajuda de muitos deles, mas especialmente de Atal, Mary aprendeu a língua deles e pode compreendê-los. Mas havia outra coisa que ela precisava compreender, e isso era o sraf. Ela sabia de sua existência, mas não podia vê-lo até que fez um instrumento através do qual pôde olhar. E agora que conseguiu, estava pronta para aprender mais sobre o que devia fazer para ajudá-los.

Depois, pediu para Mary subir junto com ele. Mary subiu e falou que eles são gentis e que ela é grata por eles terem ajudado a fazer o vidro. Depois, disse que terá muito prazer em ajudá-los da maneira que precisarem. Sattamax disse que é bom ouvi-la falar e espera que ela possa ajudar, pois, se não puder, não sabe como vão sobreviver. Ele disse que os tualapi vão matar todos os mulefas. Disse também que as árvores estão morrendo. Disse que Mary consegue ver coisas que eles não conseguem ver e eles esperam que ela descubra a causa da doença das árvores, encontre uma cura e invente um meio de lidar com os tualapi, que são tão numerosos e fortes. Espera que ela possa fazê-lo brevemente, caso contrário, todos eles vão morrer. Mary, se sentindo estranhamente lisonjeada, mas sem a menor possibilidade de satisfazer aquela esperança, disse que faria o melhor que pudesse, tentaria ajudar e agradeceu por confiarem nela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A LUNETA ÂMBAR #17

CAPÍTULO 17: ÓLEO E LACA Mary Malone estava construindo um espelho porque queria testar uma ideia que tivera: tentar capturar as sombras. Se...